Tema recorrente nas conversas entre futuros historiadores é a falta de tempo para as leituras extra-acadêmicas. Ler é parte importante da nossa atividade profissional, escrever também. Porém, a quantidade de leituras e tarefas a cumprir no prazo certo, nos deixa um pouco obsoletos em relação à leituras fora de nossos temas de trabalho. Desde aquela obra clássica da sociologia que a gente nunca termina ao mais novo clássico da literatura nerd que, não tão cedo, folhearemos: todos eles, durante boa parte do ano, cairão no ostracismo bibliográfico. E durante as férias? Bem, existe a praia, que você não frequenta há tempos; existem as temporadas atrasadas das suas cinco séries favoritas, que você não vê há dois meses; existem teus amigos, que só faltam te sequestrar para tomas uma cerveja ou um café com eles e existe a cama, que quer uma simbiose com o teu corpo. E você, que sente urticária ao ouvir o verbo "ler", não chega nem perto da sua prateleira de livros, a não ser para tirar a poeira. O resultado disso é o monte de obras encalhadas que você comprou, ganhou ou pediu emprestada que te esperam, olhando lá de cima, para uma folheadinha ou um contato mais intenso. Até que chega o momento quando aquele Stieg Larsson, que ganhaste da mãe/namorada/namorado/amiga/peguete, resolve berrar "Largue este Bourdieu imediatamente e venha me pegar agora!!". É o momento que pensas, após ouvir imperiosa ordem, "caramba, o que estou fazendo com minha vida!". Essa é a hora que ligamos o botão do "dane-se o mundo" e nos jogamos em cima das nossas leituras de farra, jurando que as situações anteriores não acontecerão novamente. Isto é, se você for uma daquelas pessoas que cumpre as promessas feitas...
Durante uma aula na graduação, ouvi um conselho que todo historiador deve seguir à risca: "Não leiam somente o que a universidade exige, leiam coisas fora da sua área de atuação". Talvez porque ler somente o necessário nos torne limitados, e a limitação é um veneno para o pensamento. Dito isto, me reservo ao direito de fazer "mea culpa" por todas as obras que não li ou li pela metade durante a graduação. Não significa, entretanto, um sumiço delas da "lista de livros que Flávia lerá": elas terão sua vez. Na verdade, este longo preâmbulo era para chegar ao assunto deste post: a obra que mereceu uma segunda chance desta moça aqui.
O livro em questão é
As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. Desde o ensino médio, queria ler alguma coisa escrita pelo Galeano. Um dos meus exercícios do livro de gramática era um pequeno trecho do
Livro dos Abraços. Descobri que ele é editado pela LP&M e foi lançado naquela coleção dos
pocket books. Aproveitarei que é ano de Bienal do Livro e, é óbvio, comprarei
Já vira algumas entrevistas com o autor, já lera alguns artigos escritos por ele, cujo o assunto era a América Latina, e já ouvira falar muito bem da obra. Só faltava um empurrãozinho para eu ler aquele livro de capa branca e letras vermelhas. Ele veio durante uma aula de História da América I, no longínquo ano de 2006. A professora, ao discutir sobre o início do processo de colonização espanhola e o trabalho dos indígenas, comentou que a obra possuía uma magnífica descrição das minas de San Luis Potosi. Para quem acompanha futebol sul-americano e a Libertadores, o nome não é estranho. O Real Potosi, equipe de futebol da cidade, já enfrentou alguns clubes brasileiros, além de Potosi ser um dos locais de maior altitude no continente. Só que Potosi não é só a "cidade que o time precisa parar de correr para receber oxigênio". Durante os séculos XVI e XVII, foi a cidade da mina de prata mais opulenta e mais rica de todo o império colonial espanhol. E que foi sangrada até o último grãozinho. Isso às custas de muitas vidas indígenas. Contar resumidamente o auge e a ruína de Potosi não é o objetivo central de As Veias Abertas da América Latina, mas tal trecho possui relevância no contexto geral da obra.
Porém, um longo tempo se passou entre o empurrãozinho e o contato efetivo com o livro. Até recomendei, mesmo antes de lê-lo, o livro para uma aluna durante aula de História Geral. Depois de pegá-lo na biblioteca e nem chegar perto dele, dei a segunda chance. Ele merecia, oras! Então, logo depois que terminei, maravilhada pela obra, senti que ela merecia uma resenha.
O objetivo de Galeano é fazer uma discussão sobre o subdesenvolvimento da América Latina. Para isso, o autor retoma as relações de dependência entre América Latina com Estados Unidos e Europa. Esqueçam as explicações culturais e deterministas: Galeano recorre à colonização para entender essas relações de dependência e a origem do subdesenvolvimento. Ao longo do livro, o autor deixa claro que o subdesenvolvimento não é uma fase do desenvolvimento, mas a outra face do capitalismo. A exploração de muitos é necessária para as benesses de muito poucos.
Galeano divide a obra em duas partes. Na primeira, ele traça um histórico da exploração dos recursos naturais e o quanto eles geraram riquezas para os principais estados europeus. Na segunda parte, Galeano trata sobre as relações entre as grandes potências e a América latina, traçando um panorama destas relações desde o século XIX. Tanto na primeira, quanto na segunda parte, o autor não recua diante de assuntos espinhosos. Estão lá as discussões sobre revoltas populares, guerras motivadas por ganância e as relações de subserviência entre nossos governos latino-americanos e os "países ricos". As Veias Abertas da América Latina é uma obra de História Econômica para principiantes, porém escrita de maneira literária. Galeano é jornalista, escreve uma obra de "economia para as massas", porém não é reducionista como Laurentino Gomes, Leandro Narloch e Eduardo Bueno.Aliás, o próprio autor afirma o caráter "literário econômico" da obra no posfácio, chegando até a criticar o hermetismo nos estudos de historiadores, economistas e sociólogos. Ou seja, pesquisa não precisa falar para poucos e ter linguagem difícil.
E ao contrário de certos veículos de comunicação, ele cita as fontes de onde retirou as informações para o livro!
Todas as vezes que lia algum comentário sobre o livro, sempre aparecia alguém que o tachava de datado - no pior sentido que a palavra "datado" possa ter. Óbvio que é datado; Galeano o publicou durante a década de 1970. Porém, o tema que ele trata não é; pelo contrário, nos ajuda a entender as opções políticas e econômicas tomadas pelos atuais governantes latino-americanos. Adoraria que Galeano escrevesse um "posfácio do posfácio", justamente para discutir o papel das ditaduras militares (com a exceção do México, onde o PRI governou até meados da década de 1980) e as transformações nas democracias latino-americanas, pois, após 1999, mudanças profundas ocorreram na América Latina. Durante a leitura também refleti sobre o pouco espaço dado à História da América Latina nas escolas. Fazendo as contas e dando uma olhada básica nos programas e nos livros didáticos, só vemos a colonização, as independências, um pouquinho do século XIX e as ditaduras. Adicione a isso a maneira como a grande imprensa trata a América Latina e o resultado é um quase desconhecimento sobre o restante do continente.
Por isso considero a leitura de As Veias Abertas da América Latina importante. Primeiro, porque informa aos leigos a história de nosso continente, contado por outro viés. Segundo, porque nos faz refletir sobre a política latino-americana. Terceiro, porque reafirma nosso pertencimento a este continente, por mais que o senso comum não reconheça isso.
Um adendo: este texto foi escrito antes, durante e depois da morte de Hugo Chavez e do processo eleitoral na Venezuela. Ou seja, antes de repetir feito papagaio o discurso da nossa querida grande imprensa, leia um pouquinho mais sobre a América Latina. Garanto que, depois da experiência, você pensará duas vezes antes de xingar a alma do Hugo.